| CONFLICT |
Gostaria de reagir a esta mensagem? Crie uma conta em poucos cliques ou inicie sessão para continuar.

Made in Covilhã

Ir para baixo

Made in Covilhã Empty Made in Covilhã

Mensagem por Sabor Gerações Sex 02 Jan 2015, 08:21


do Desassossego

Pai, ensina-me o que é ter vontade de.
Tens vontade de mo ensinar?
As vozes voltaram a encontrar
o meu peito. Haverá forma de
lhes dar a volta? Elas voltam
sempre. E eu, sem vontade de.
Ouvir? Escutar? Sempre tive
mais a dizer do que a ouvir,
e no entanto nada disse.
Nunca. E se o tivesse dito,
Pai? Conseguiria dizer o silêncio?
Quando me calo é quando
mais tenho para dizer.
Nunca o disse a ninguém.
Eles não iriam ouvir.
Sorriam. Como podem eles sorrir,
Pai? Consegues ensinar-lhes a
sorrir com vontade, e não com
lábios? Eu não quero lábios.
Porra, não! Não! Lábios não!
Eles falam! Diz-lhes a tua vontade.
A minha vontade. Vontade de.
De quê? Não! Outra vez não...

Romântica Pornográfica

Uma mulher despe-se
Com beijos nos ouvidos
Para que consiga ouvir
O teu coração.

Nesse momento,
Um piano irá tocar pianinho
A vontade de lhe tocar.
Não toques.

O amor fica

Onde ela não está,
Embora a sintas.

O amor fica sempre

Onde ela não está.

Zig-zag

Recordo-me, pouco havia a dizer. Não que as palavras não tivessem valor merecedor do momento; palavras têm o valor de palavras, apenas. Alguém discutia por entre goles de copos cheios pela metade, soluços perdidos na pauta, a bengala daqueles pobres descrentes que acreditam em acreditar ter encontrado algures o sentido disto, da vida, saiba-se lá do que se trata. Não, não se falava dum deus qualquer ou de religião; ainda não estavam nem tão bêbados, nem tão pobres. Falava-se de amor, a tristeza mais feliz do animal e, em raras excepções, do Homem. O amor é isto!, só pode ser isto!, diziam cheios de uma paixão hidratada por mais um gole. O amor é servido nas mais variadas formas!, se sofres é amor, se se se... E a discussão continuava cada vez mais hipotecada por ideais absolutos, ou proclamados como tal, possivelmente por donos de relações desamoradas, hipotecadas pela falta do amor como valor, e não como um preço. Se pudesse teria mandado uns quantos irem-se foder... Com amor, claro... Mas recordo-me, pouco havia a dizer. Discutir pelo amor ou, na pior das hipóteses possíveis e impossíveis, discutir o próprio amor em carne e osso só o faria menos amor, menos verdadeiro, como se uma defesa dum respectivo partido político se tratasse, crendo eu mais na veracidade da segunda. Não há nada a dizer, muito menos a acrescentar sobre ele. Se é amor deixem-no ser. Não pensem; se o amor não pensa, de nada servirá pensar por ele. No entanto, nem o ruído do silêncio era expulso pela minha boca: respirava fundo, sossegado por um cigarro. Um pouco mais à frente, um casal dançava. Parecia-me, sem sarcasmo, uma dança embalada por uma daquelas cantigas dramáticas dos romancistas do povo: apaixonados, marcando a palpitação do companheiro disfarçando a ebulição corporal enquanto as mãos, servas da anca rainha, a desejavam em segredo. Talvez, pensei, alguém descubra uma doença terminal a meio da malha e se afastem durante muito tempo, demasiado tempo para o que a saudade animal aguenta - apenas essa é real - mas, no entanto, por obra do espírito santo ou dum Sparks qualquer, acabem por ficar juntos, acabem por ser felizes para sempre. O amor como um preço?, rafeiros de merda. Perceberam que os observava, olharam-me com o desprezo dum daqueles dealers que me aborda no Rossio, com dois caldos Knorr na mão, anunciando o falso pecado ao verdadeiro pecador. Um diabo que se preze terá sempre de saber quantos demónios vivem no seu inferno, rafeiros de merda. Desviei o olhar, perdeu-se-me o interesse. Afastaram-se, pagaram a conta. Provavelmente a figura masculina levaria a sua companheira a casa e acabaria por subir, com uma desculpa em tom de desafio alimentado por ambos. Recordo-me, levantei-me depois deles e saí também. Talvez tenha ido com alguém para casa também. Do amor, até hoje, não me recordo nada.

Actividades Para Anormais

Hoje sei que escrevo
para passar o tempo
ou para o tempo
não passar por mim
(será esta confusão minha
sujeita a critérios distintos,
diferenciando o relógio
ou o pulso).
Pouco mais serei do que
isto: um ser, e todo ele
é pouco.
Não sei se corra vivo
para a própria morte,
triste biologia metafísica,
ou se rasteje morto
para a vida que dizem minha
como um crente implorando
à sua concepção de deus
para não viver um segundo
inferno.
Tudo o que sei é que
escrevo, para e contra o tempo,
meu triste contratempo.
O anúncio do fim
recorda-me comovido
o início do findado,
lembrando que por acaso
tudo acontece, e não é
tão breve, como o tempo,
porque sinto e penso,
e sobrevivem horas solitárias
dentro de mim, quando
nada acontece.
Encontro-me vezes
demasiadas, quase sempre
(o tempo exige quase sempre
um quase, antes do sempre;
só o nunca é independente
de qualquer oposição)
escrevendo sobre o porquê
de escrever.
Hoje sei que escrevo,
provavelmente sobre escrever
o porquê de escrever,
e conforme o tempo passa
sobre mim, não passa
sobre as palavras que hoje
escrevo sobre o tempo,
que ainda assim serão
sobre mim. É este
momento, o eterno:
não passou.

Amenex / Ventre Lar

manhãs cinzentas, aquelas em que minha mãe rezava
lúgubre cancro, enfeitado de cruzes
e o suplício a tal divindade que nunca respondia
em salvação.
nessas manhãs, só eu a ouvia
pobre mãe, lúgubre cancro, esperança no além
e só eu respondia.

nessas manhãs, eu era deus.
nessas manhãs, pensava, deus ficou a dormir
e um mundo inteiro não pode ficar sem deus
durante uma manhã.
nessas manhãs, eu era deus.

mais tarde, depois de deus ter acordado numa manhã
e ter levado minha mãe, e seu lúgubre cancro
descobri que deus só existe no tempo limite
que é dizer o limite de tempo dum homem no limite
de não existir tempo nem vontade que o haja
e suplicar por maior.

nessa manhã, eu não fui deus.
nessa manhã, pensei, ninguém rezou
porque o céu não está cinzento, e todo o homem sorri porque o sol canta.
nessa manhã, ninguém foi deus.

---

O teu olhar afogava as ondas, e borbulhava mais alto do que o fim do céu, e tempestades não tinham lugar sem ser nos teus olhos, quando choravas. E avançavas lentamente, Virgem Ana, tornando maior o espaço das tuas paredes, e eu a ventilar em ti, ventre lar.

O teu cabelo encontrava sempre o caminho quando me perdia em ti, e os labirintos virgens não tinham fim, à partida de mim, quando a querer queria não procurar. E avançavas lentamente, Virgem Ana, tornando maior o espaço das tuas paredes, e eu a ventilar em ti, ventre lar.

Respira!
Respira!
Respira!
Respira...

Foste, Virgem Ana, ventre lar, que se tornou uma nuvem negra em céu limpo.

Não respires.

Mais textos em
jorgebogalheiro.blogspot.com


Última edição por Sabor Gerações em Sáb 21 Fev 2015, 22:57, editado 1 vez(es)
Sabor Gerações
Sabor Gerações
Miguel Rossiter

Mensagens : 393
Data de inscrição : 24/12/2014

http://jorgebogalheiro.blogspot.pt/

Ir para o topo Ir para baixo

Made in Covilhã Empty Re: Made in Covilhã

Mensagem por Sabor Gerações Sex 20 Fev 2015, 21:00

Interlúdio antes de voltares / Tablatura pra tocar a rapariga intocável (quanta comoção?)

disseram-me ainda antes de me pensar fazer homem: o talento perdura
consoante o tempo em que fores capaz
de amar a solidão que é amar a tua sombra
consoante o tempo em que não penses
fazer-te homem.

tu chegaste enquanto jantávamos - eu ocupado
com o auto-combate de não te ter
ouvido
bater.
tu pediste-me para dançar - respondi que nunca aprendi
ocupado a sentir a música que saía pela minha garganta fora
dando dois goles em seco num copo de whisky
- o primeiro.

nunca soube dizer-te o medo que tinha em não temer-te
escrevendo sempre quando saías,
sempre que saísses,
o maior perigo é não temermos...
tu saías mas voltavas sempre
atrás, ou à frente
antes de eu poder sequer pensar
terminar a frase
antes de eu poder sequer pensar
fazer-me homem.

tu pedias o isqueiro que me acende
- a mim e aos meus cigarros.
por uma noite, permitia que ele se esquecesse de me ver
morrer
e com ele acendias velas que cheiravam
não a ti
mas ao que cheiras quando sais.
eu sorria sempre, tu sorrias sempre;
eu não entendia nunca, tu entendias sempre.

depois despias-te do teu dia
possivelmente igual a todos os dias
possíveis
para eu te poder ver
vestir. e chamavas-me.
eu sorria sempre, tu sorrias sempre;
eu não entendia nunca, tu entendias sempre.

convidavas então o meu esqueleto a deitar-se
sobre o teu império - a tua cama.
acariciava-te e trincava-te as costas
a teu pedido quando não me vias
- era teu, o império e eu
mero tronco nu súbdito de todas
as tuas fantasias,
rendido. a tua pele
era a única certeza,
rendido. a tua pele
era a última certeza.

eu nunca fui josé, teu pilar
tu nunca foste pilar, meu pilar
e isso chegava e chegará sempre
enquanto vivermos.

--------

no teu silêncio - quanta comoção sem dentes? - as palavras prendem-se aqui entre os teus lábios fechados no meu pensamento e o teu pensamento fechado em teus lábios, tornando-te tu o próprio verbo a ser conjugado na primeira pessoa [não existindo nenhuma outra].

(não a digas sóbrio quando amor não é...)

na tua presença - expressão de quantas paisagens? - prevalece o fim do mundo que o mundo conhece, [e hoje todas as mulheres dos meus sonhos andam vestidas] porque o sonho não tem as medidas do mundo mas tu tens.

(não a toques sóbrio quando amor não é...)

- mais um copo de whisky e juro que te amo.
Sabor Gerações
Sabor Gerações
Miguel Rossiter

Mensagens : 393
Data de inscrição : 24/12/2014

http://jorgebogalheiro.blogspot.pt/

Ir para o topo Ir para baixo

Ir para o topo

- Tópicos semelhantes

 
Permissões neste sub-fórum
Não podes responder a tópicos